Estamos vivendo um grande retrocesso no Brasil na agenda ambiental, com a passagem da boiada apregoada pelo Governo Bolsonaro, e que faz parte de um conjunto de ações, um projeto mesmo, de grandes interesses nas riquezas naturais, orquestrado pelo Capital. Compreende tanto aqueles eventos visíveis, como o avanço do agronegócio sobre as áreas protegidas, da floresta amazônica, remanescentes de cerrado, e aqui próximo da gente, na Mata Atlântica; como aqueles subjacentes, paralelos, oportunistas, como a ocupação das regiões de mananciais por interesses imobiliários, os projetos privados pequenos e grandes de geração de energia à partir da queima de carbono, centros de logística, entre outros. Isso sem contar os projetos ligados à incompetência do governo do Estado de São Paulo no abastecimento de água, com a SABESP e suas obras altamente impactantes buscando água cada vez mais longe para satisfazer a gana do capital por mais venda dessa mercadoria chamada água tratada.
Esse projeto, para além da exploração dos recursos naturais, mira também a exploração desse grande mercado que é o Brasil, e no caso, o Estado de São Paulo.
Para ele, estar em movimento e para que a porteira continue aberta com bois e boiadas passando, não há limites para suas ações, e nessa esteira, não há limites também para sua capacidade de cooptação e de colocar vernizes que parecem lustrar consequências extremas, nefastas até, para a nossa própria sobrevivência.
PNRS – 10 anos
No ano de 2020, a Política Nacional de Resíduos Sólidos completou 10 anos. Para quem acompanhou o processo de construção dessa política, sabe que ela demorou 20 anos para ser gestada! E sabe também que só foi possível graças à grande capacidade de construção de consensos de Lula e do PT.
No entanto, os arranjos institucionais e normativas para que ela fosse levada a cabo, não foram suficientes para que fosse integralmente implementada, encaminhada pelo menos. Com 11 anos de idade neste momento, mesmo as normativas tidas como insuficientes não avançaram para sua consecução. E agora, menos ainda! Muito menos.
Neste momento, se abre caminho para que esse projeto de destruição da soberania nacional ofereça espaço para que uma atividade subjacente volte à pauta, lembrando que se ela tem sido rechaçada recorrentemente, nunca deixou de existir como proposta, sempre encontrou eco no projeto neoliberal, mas que sempre encontrou resistência por parte dos especialistas e ativistas. Trata-se da incineração de resíduos com verniz de cogeração de energia.
É importante destacar logo de início, que a INCINERAÇÃO de resíduos é uma Rota tecnológica fracassada na Europa. Passou a ser tratada como rota ineficiente na aplicação de recursos[1] e crescentemente regiões e países ampliam os impostos que lhe são aplicados e encerram a operação de instalações (Barcelona, Paris, Bélgica, Suécia). Nos EUA, incineradores não são licenciados há 25 anos, e instituições americanas apontam que contra a incineração, são gerados 35 mais empregos em atividades econômicas ligadas à recuperação e reciclagem de resíduos, secos e orgânicos[2].
A Europa, e boa parte de federados dos EUA se afastam da incineração, e os países desenvolvidos estão mudando sua posição, em primeiro lugar, por conta dos impactos ambientais de grandes proporções, das consequências na saúde humana e na sustentabilidade, consequências essas cientificamente inquestionáveis.
A indústria da incineração busca agora mercados desregulados no Hemisfério Sul, e pela lógica dos investimentos que fizeram para essas “tecnologias”, não querem perder. Não existe essa palavra no vocabulário do capital.
E o verniz apresentado, mesmo não sendo aquele de “queima” dos resíduos, compreende outras formas de destruição desses resíduos, não menos poluentes e impactantes, mas que sobretudo utiliza a lógica de destruição desses resíduos.
Ora, a própria PNRS estabelece, em seu artigo 9º, que a gestão de resíduos deve obedecer a uma lógica de prioridades:
Art. 9o Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
Ou seja, tratamento e disposição final estão por último, e mesmo assim, não necessariamente se trata de queimar ou destruir os rejeitos.
Não foi dado o necessário peso para as tecnologias e ações políticas e normativas estruturantes para que se atue na não geração, na redução, e mesmo na reutilização e reciclagem de resíduos. Nem se pode dizer que engatinhamos nesse sentido.
Outros fatores relativos à PNRS devem ser levados em consideração antes de se falar em tecnologias de tratamento altamente impactantes, como por exemplo, a geração de trabalho e renda a partir da reciclagem, a redução da produção de embalagens que só têm o objetivo de vender o que se embala, transformando, por exemplo, o alimento, essencial à vida humana, em simples mercadoria, isso sem falar do desperdício de alimentos, que a sensação de abundância nos faz ser protagonistas.
E ainda, é necessário destacar, que na PNRS existe o chamado “princípio do poluidor-pagador”, questionável, já que busca tão somente monetizar o erro, a destruição, a poluição. Mas nem sequer isto avançou. Nos galpões de triagem acumulam-se os tipos de resíduos para os quais o setor produtivo não cumpre sua parte na responsabilidade compartilhada.
Quanto a este conceito da LF 12.305/2010, o da responsabilidade compartilhada, embora sob os governos de Lula e Dilma se tenha avançado nos acordos setoriais, os lobbies representantes das indústrias responsáveis pela geração de grandes volumes de resíduos, muitos deles altamente poluentes, e que teriam como responsabilidade por sua gestão na cadeia produtiva e de distribuição, passaram o tempo todo se esquivando, negando, e tentando minimizar sua responsabilidade. E mesmo esses acordos setoriais correm o risco de serem descumpridos, se já não o são, como no caso das embalagens, devido a conjuntura de boiada passando.
Hoje, no Estado de São Paulo, existem várias tentativas de instalação de tecnologias nessa rota de destruição dos resíduos, e pior, todas elas de incineração, totalmente desconectadas da emergência climática que já está desafiando a gestão das cidades.
Cabe destacar, por estarem mais avançados, os empreendimentos privados da Baixada Santista (este em completo conflito com as soluções para abastecimento de água) e de Mauá (elevando ainda mais a poluição atmosférica já existente), mas também aquele patrocinado pelo Governo Dória em Diadema, na gestão Lauro Michel, seu aliado, por meio da SABESP. Em todos estes eventos estiveram profundamente ausentes os diálogos qualificados com a população e suas organizações locais. Mesmo com exemplos fartos de descontrole de emissões de incineradores em países desenvolvidos[3], liberam-se empreendimentos em nossas regiões com elevados problemas atmosféricos, como os decorrentes de Cubatão e do Polo Petroquímico de Capuava[4].
Os estudos já existentes são ignorados – da elevação dos índices de câncer no entorno das URE[5], da redução do valor dos imóveis das proximidades[6], ao desprezo por soluções que envolvem muito mais agentes e negócios existentes, e permitem uma maior conservação de energia líquida para a maioria dos materiais: plásticos em geral (8 vezes maior), plástico PET (15 vezes maior), papelão (7 vezes maior), jornais (6 vezes maior), carpetes (22 vezes maior)[7] como alerta o órgão ambiental americano.
Devemos lembrar que a SABESP, no grande Programa de Desestatização do governo Dória, está na mira de ser privatizada, também na esteira de passagem da boiada, com a mudança no marco regulatório do saneamento, que prioriza a presença do capital nesses serviços essenciais, entregando para a iniciativa privada as melhores fatias desse “mercado”.
Com o consentimento do órgão ambiental do Estado para o privilegiamento dos investidores em detrimento da qualidade de vida, ignoram-se os inúmeros exemplos de conflito entre os interesses privados por resíduos combustíveis, e a necessidade planetária de recuperar materiais que escasseiam[8]. Se a meta passa a ser a queima de resíduos, não haverá como avançar com a recuperação e reciclagem de resíduos ordenada pela PNRS além das pequenas iniciativas “de fachada”.
Não bastasse a própria defesa da saúde pública, da vida, e aqui fica um parêntese de que é meio decepcionante ter que tratar nesses termos, existe um alto custo político na aceitação dessa rota:
• TODOS os segmentos sociais e grupos políticos progressistas são contrários a ela – é AGENDA NEGATIVA;
• Gestores que a aceitaram têm dificuldades em período eleitoral
• Outras rotas possibilitam reconhecimento público, ganho político, resultados sociais, econômicos e ambientais expressivos
• As crises ambiental e climática atuais e a velocidade das transformações impõem adesão a iniciativas que dialoguem com o “novo”, com a defesa da vida e um futuro melhor.
Dito isto, é necessário que passemos a construir alternativas imediatas, possíveis, para a ação do nosso campo.
Há uma Rota que pode ser apresentada como EM DEFESA DA VIDA, que é AGENDA POSITIVA, possibilita e atrai forte envolvimento de setores sociais de baixa e média renda, gera trabalho, renda e alavanca negócios locais já operantes, ampliando arrecadação municipal, em economia circular (recuperação versus destruição de resíduos)
Inclui a inevitável introdução da Taxa de Manejo de Resíduos Sólidos – TRS, necessária, já permitida por Lei, e que deve envolver inicialmente a regulamentação dos Grandes Geradores, provocando mudança profunda na sustentabilidade econômica do serviço público, considerando que os orçamentos municipais são fortemente impactados pela gestão de resíduos em qualquer município.
Possibilita apresentar a TRS e o Preço Público para Grandes Geradores como agenda positiva para a cidade, premiando o “Protetor – Recebedor” e discriminando os “Poluidores – Pagadores”
Outras ações, na esfera legislativa são possíveis, basta observar queMG proibiu a incineração em 2014, com forte protagonismo de movimentos sociais no processo; Porto Alegre proibiu em 2016, por iniciativa do PT e PSOL; Florianópolis proibiu em 2019, inciativa do PSOL; Brasília, DF, já aprovou em 1ª votação PL com proibição, em 9/02/2021; Buenos Aires teve decisão judicial pela proibição, em 2019.
Creio que devamos tirar como proposta para este nosso GT de trabalho no NEPP, sem esperar a necessária eleição de alguém do campo da esquerda para o governo do estado, a preparação de imediato, de minuta de PL para as Câmaras de Vereadores do nosso campo, e na Assembleia Legislativa, iniciar pressão popular em parceria com os parlamentares aliados e do nosso campo, para a aprovação de PL já existente, “descansando” na longa pilha de projetos inócuos e negativos. Além disso, entendemos que o nosso campo pode incorporar e patrocinar, do ponto de vista político, o encaminhamento de um PL estadual que trabalhe para a redução do uso de plásticos, já que existem inúmeros projetos tramitando nesse sentido naquela casa, focados em itens específicos, como sacolinhas, canudos, entre outros, agregando esses projetos a uma Política Estadual de Redução do Uso de Plásticos, como já se faz na Europa.
Tarcísio de Paula Pinto – Consultor – DZ BUTANTÃ
Fábio Buonavita – Secretário Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento do PT/SP
[1] Comisión Europea. Comunicación de la Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al Comité Económico y Social Europeo y al Comité de las Regiones. Hoja de ruta hacia una Europa eficiente en el uso de los recursos. Bruxelas, 2011.
[2] [2] Institute for Local Self-Reliance, Washington, DC, 1997. http://www.ilsr.org/recycling-means-business/
[3] Dinamarca (Norfors): violação do controle de dioxinas em 7 de 15 medições em 5 anos; Holanda (REC, Harlingen): emissões persistentes de dioxinas, furanos e poluentes orgânicos acima da legislação, conforme veredito do Conselho de Estado em disputa local.
[4] https://www.abcdoabc.com.br/abc/noticia/poluicao-pode-ser-17x-maior-polo-petroquimico-capuava-6279
[5] GARCÍA-PÉREZ, J. et ali. Cancer mortality in towns in the vicinity of incinerators and installations for the recovery or disposal of hazardous waste. (Mortalidade por câncer em cidades nas proximidades de incineradores e instalações para a recuperação ou descarte de resíduos perigosos). Espanha. Environment International 51 (2013) 31–44
[6] Richard Klein, Community & Environmental Defense Services, Citizen Perspective on Siting Solid Waste Facilities, presented to the Maryland Solid Waste Task Force (Owings Mills, Maryland: October 12, 1999).
[7] WASTE MANAGEMENT AND ENERGY SAVINGS: BENEFITS BY THE NUMBERS. Anne Choate, Lauren Pederson, Jeremy Scharfenberg, ICF Consulting, Washington DC. Henry Ferland, U.S. Environmental Protection Agency, Washington DC.
[8] Há exemplos da Dinamarca e da Alemanha (Stuttgard) em que governos tem que importar resíduos para cumprir metas de contratos com investidores privados da incineração.
Leave a Comment