Existe um clichê de palestras motivacionais que diz que se deve olhar sempre a metade cheia do copo, que toda circunstância ou fato da vida, por pior que possa ser, ainda assim pode trazer ou ser encarado como algo positivo para quem o enfrenta.
Clichê ou não, a máxima pode ser aplicada à experiência de vida e de luta de Égle Maitê, desde o dia 2 deste mês a (primeira) Secretária (negra) da Juventude do Partido dos Trabalhadores de São Paulo (JPT-SP).
Na descrição da sua página no Insta, está escrito: “cria da periferia, mas tô ocupando uns espaços que os brancos nem acreditam, mete marcha fii.”
É da periferia mesmo. Se bem que não geograficamente da periferia, do Lauzane Paulista, bairro de classe média na zona norte da capital, mas que como tantos outros carrega a desigualdade social brasileira nas suas esquinas, expondo-a entre uma rua e outra, entre o condomínio com varanda gourmet e o conjunto habitacional semiconcluído e já entregue, a um quarteirão de distância um do outro, e que distância enorme os separa.
Estudou a vida toda em escola pública (a vida toda, não. Estudou até o ensino médio em escola pública. Depois, em faculdade privada, trabalhando e estudando). A mãe é diarista, com seu trabalho criou a filha, e até hoje é diarista.
Está ocupando uns espaços de branco, mesmo. Égle, que não é negra retinta, como ela mesma explica, a cor da sua pele é mais clara do que a de outras pessoas negras do Brasil, levou certo tempo para enxergar a sua negritude. Mas a realidade vai saltando aos olhos.
Teve um namorado que encerrou o relacionamento com ela alegando dificuldades da família em aceitar sua origem e sua cor. Teve uma batida policial em que ela estava junto com mais cinco pessoas, brancas, e ela foi a única que ouviu perguntas como: “você já roubou alguma coisa na sua vida? Nem quando era criança? Lembra direito, não roubou?”, e essa não foi a primeira nem a última vez que foi abordada pela polícia, respondendo rápido foram mais de dez.
E teve a vez em que a reportagem perguntou se ela já tinha sofrido algum preconceito em bares, restaurantes ou qualquer local público, se poderia citar alguma vez, e ela respondeu, “nossa… mas são tantas… você diz da minha vida toda?”.
Agora ela é a primeira secretária negra da Juventude do PT. Ocupando o espaço, mesmo. Acreditem ou não.
Quando Dilma Rousseff (“que era a primeira presidenta do Brasil. E já foi tirada do poder. É coincidência?”) foi tirada da presidência da República, em agosto de 2016, Égle foi a mais de uma manifestação em defesa da presidenta. Ela e uma amiga foram, e ali todas aquelas pessoas e grupos querendo resistir como ela queria, e o natural foi se aproximar da Juventude do PT, o partido em quem ela votava, com o qual se identificava, pelo qual se sentia representada.
E depois a prisão do Lula (“antes e depois dele ser preso, eu jamais deixei de acreditar no Partido dos Trabalhadores e de enxergar a injustiça que estava sendo cometida, isso nunca me abalou, pelo contrário”), e depois a campanha e a eleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2018, isso tudo, a vontade de combater e reverter isso tudo, é que fez a Égle chegar junto ao PT.
A metade cheia do copo.
“Eu entrei (na JPT) trabalhando na base, militância, ato de rua, colagem de lambe, protesto. Lutamos pra comprar uma bateria, pra agitar as manifestações, fiz banquinha em época de campanha, encontros e debates na periferia. A primeira ‘função oficial’ que eu tive foi de coordenadora da Juventude Negra, em 2019”, lembra a secretária.
Em abril deste ano, ela, suas companheiras e companheiros refundaram a JN13, a Juventude Negra do PT. No Encontro Estadual da JPT realizado entre os dias 21 e 23 de abril em Araraquara, foi refundado o coletivo JN13. O processo foi resultado da construção coletiva de negras e negros da direção estadual da JPT-SP, consagrando uma das prioridades estratégicas definidas em encontro do ano anterior, realizado em Pindamonhangaba.
Égle e demais participantes redigiram uma Carta de Refundação que merece ser lida na íntegra, e basta clicar aqui.
Em seu início, diz que, “nos últimos anos, após o golpe contra a então presidenta Dilma Rousseff, nossa Democracia foi duramente atacada, e a população negra colocada como um dos principais alvos políticos da extrema direita. O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.”
Em seguida, apresenta a história da Juventude Negra do PT, de fato a primeira juventude partidária identificada com a população negra do país, em defesa de seus direitos, criando espaços que têm brancos que nem acreditam.
Explica que o 1º Encontro Nacional da Juventude Negra Petista foi realizado pela Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT, em Belo Horizonte, em janeiro de 1998, com a temática “Juventude Negra Jah – Construindo sua Identidade”.
Contou com a participação de figuras como Jurema Batista, feminista negra carioca e ativista em defesa dos direitos humanos, que depois viria a ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz (2005), eleita vereadora (1992, 1996 e 2000) e deputada estadual (2002), pela cidade e pelo estado do Rio de Janeiro, e pelo PT.
E, principalmente, expõe os 13 pontos de luta que aquela Juventude iria encampar, e que de fato encampou, e que de fato encampa até hoje. Todos devem ser lidos, e basta clicar aqui.
Abaixo, alguns exemplos:
. A ocupação dos espaços de poder por jovens negros e negras no Partido dos Trabalhadores e um basta de perseguição/lawfare contra parlamentares negros!
. Renovação dos quadros a partir da inclusão racial, nos espaços partidários e no parlamento;
. Por uma segurança pública cidadã e antirracista: pelo fim da guerra as drogas, encarceramento em massa da juventude negra e pela desmilitarização das polícias;
. Preservação da memória e das lutas históricas do povo negro e a descriminalização do funk, rap e hip-hop;
. Pelo fim das desigualdades, que sempre tendem a ser muito maiores e mais presentes na vida da juventude negra.
Assumindo a secretaria de Juventude da JPT-SP, Égle diz a que veio e aonde quer chegar:
“O foco do nosso trabalho é fortalecer a participação da juventude negra na política. Essa é a área em que eu milito, onde eu debato, e onde a gente precisa crescer e construir mais. O PT é o partido que menos fica só no discurso, mas ainda precisa fazer muito, já fez muito e ainda precisa fazer muito.”
São essas as bandeiras pelas quais Égle Maitê agora lutará, de fato já está lutando, como (primeira) secretária (negra) da Juventude do PT-SP, e pelas quais não espera e não irá lutar sozinha:
“A juventude tem que entender que tudo na vida é política. É importante que a gente participe das lutas, dos debates, das decisões. O PT sempre foi o partido que mais abertura deu para que trabalhadoras e trabalhadores, negras e negros, de qualquer região ou afetividade que quisessem participar desses processos tivessem acesso. Comigo, estão cada vez mais as portas abertas.”