Na semana em que o país se aproxima de 3,5 milhões de casos e ultrapassa a assustadora marca de 110 mil óbitos em decorrência da Covid-19, somos levados a analisar a grave situação e os dados preocupantes da epidemia até aqui e pensar os próximos períodos, vez que os cenários são ainda críticos e incertos.
Refletir sobre os impactos da epidemia no Vale do Paraíba, suas consequências diretas e indiretas sobre a população, é necessário um olhar sobre o contexto em que se estabeleceu no país relacionado aos cenários da epidemia e as medidas governamentais adotadas.
Há dois meses, aproximadamente, se mantém acima de 1mil o número de mortes diárias no Brasil, com o país acumulando mais de 110 mil vidas perdidas somente pela Covid-19. Também é elevado o número de novos casos confirmados, com a média diária acima dos 40 mil, mantendo a epidemia num platô muito elevado e inaceitável, expondo a fragilidade e a incompetente condução do processo pelo Ministério da Saúde.
Ainda que se leve em conta que no início da pandemia muito pouco se conhecia sobre o vírus, já se observara a gravidade e o impacto provocado nos países da Ásia e Europa, que permitiria ao país antecipar ações e fazer um enfrentamento mais equilibrado e adequado às características do país.
A velocidade da propagação do contagio foi sendo conhecida ao logo da epidemia e ainda não havia certeza se a imunidade seria ou não permanente, e a viabilidade do desenvolvimento de vacina era naquele ainda naquele momento uma possibilidade remota, e mais ainda a chamada imunidade de rebanho, ou coletiva, cenário onde a maioria da população consegue a imunidade individual.
As únicas certezas para conter a propagação da epidemia eram, e ainda são, as medidas de proteção do uso de mascaras, de higiene com a lavagem obsessiva das mãos e para diminuir a velocidade do contagio e da exposição ao vírus, o distanciamento social.
Assim, chegarmos a mais de três milhões de casos e mais de 110 mil mortes são consequências de um misto de incompetência e negacionismo. Obviamente não é possível o combate a um problema não admitindo ou negando sua existência, situação se agrava ainda mais, quando o Presidente da República emprega mais tempo a divulgar questões inconsequentes e soluções “mágicas” do que aquele que supostamente dedica-se a governar e quando, deliberadamente, nega o conhecimento científico acumulado e a própria ciência. O comportamento inconsequente gerou inúmeras crises, impondo dificuldades aos governadores dos estados, comprometendo as estratégias para conter a propagação da doença, dificultando e colocando em risco as ações necessárias ao enfrentamento do gravíssimo quadro epidemiológico e às suas severas consequências sociais.
Outro aspecto relevante e crítico ao enfrentamento da epidemia foi sem a falsa contraposição criada pelo governo federal entre economia e saúde. Tema controverso, que falseia o debate, pois para muitos economistas, os impactos na economia se diluiriam no tempo e a quarentena seria uma medida concreta para evitar o colapso do sistema de saúde, que caso se confirmasse, de forma mais intensa, provocaria efeitos graves, com malefícios sociais severos e mais desastrosos economicamente. Ainda, para muitos analistas manter todos os setores da economia abertos teria o mesmo efeito ao de condenar os trabalhadores e as famílias de baixa renda à exposição ao contágio, fazendo aumentar a velocidade da disseminação do vírus pela impossibilidade de permanecerem no necessário e recomendável isolamento social.
Existe ainda outro componente fundamental ao enfrentamento da epidemia, também negligenciado pelo governo federal que a impacta diretamente, impedindo a avaliação do real comportamento da epidemia: a baixíssima realização de testes para o diagnóstico. Seguramente, um dos maiores equívocos de condução, pois não se sabe ao certo o numero dos contaminados e das mortes decorrente dos casos mais graves gerando significativa e preocupante subnotificação de casos, e comprometendo o planejamento adequado das ações para conter a propagação da doença nos vários territórios e ainda o dimensionamento da rede de atenção necessária ao cuidado dos casos mais graves.
Alem do numero reduzido, mais da metade dos exames realizados são do tipo sorológicos que identificam se se a pessoa foi contaminada em algum momento, pela detecção de anticorpos, mas que não detectam se a pessoa está com o vírus naquele exato momento da testagem. Em muito menor quantidade são realizados aqueles exames cuja técnica se dá pela coleta de amostra de secreções do nariz e da garganta, conhecido pela sigla em inglês de RT-PCR, considerado o exame ouro, pois permite detectar e rastrear o vírus em ação e, assim, melhor organizar as ações para o enfrentamento de sua propagação e adoção de medidas restritivas à circulação dos das pessoas contaminadas.
Sim, e o que isso tem a ver com a situação no Vale do Paraíba? Tudo, pois aqui, como em todas as regiões do país, foram expostas a esse quadro geral de desorganização e adversidades.
O impacto da epidemia cresceu assustadoramente com a crescente deterioração dos processos de proteção, principalmente relacionadas ao isolamento, melhor definido como distanciamento social, como consequência direta do persistente discurso de negação da epidemia. Mais recentemente, também de forma muito intensa, o pelo discurso e retórica da flexibilização relacionada à reabertura econômica.
Na região do Vale do Paraíba primeiro caso foi oficialmente confirmado na terceira semana de março, e a primeira morte no dia 27 do mesmo mês. Seguiu aumentando de forma compatível com as ações de controle, representado por uma curva de crescimento, cujo comportamento seguia o padrão do interior do estado. Se mantidas aquelas condições, a tendência poderia apresentar um declínio progressivo no número de casos e mortes no período seguinte.
Contudo, a partir de junho, quando o cenário ainda era de aumento crescente dos números, vieram as primeiras medidas de abertura das atividades consideradas não essenciais, que se deram quando o Governo do Estado cedeu à pressão de setores econômicos e governos municipais, contrariando todas as análises e avaliações de cenários feitas por especialistas sérios e competentes dos vários campos do conhecimento. Tais medidas reduziram o isolamento social, aumentando a circulação interna e entre os municípios, resultando na mudança do perfil da evolução da epidemia e no crescimento intenso do número de infectados e de óbitos.
Em Consequência dessas medidas desastrosas, a região ultrapassou, na terceira semana de agosto, a triste marca dos 28 mil infectados e 850 óbitos, coincidindo com o período em que novo movimento de ampliação do processo de abertura de atividades ocorre, podendo levar ao crescimento ainda maior do número de caso.
Para se ter a ideia do impacto de tais medidas, das mais de 850 mortes por Covid-19 oficialmente registradas na região do Vale do Paraíba desde o início da epidemia, cerca de 600 ocorreram entre os meses de julho e agosto, ou seja, aproximadamente 70% do total no intervalo de pouco mais de um mês. Isso nos leva a uma grande insegurança quanto ao que poderá acontecer futuramente.
Neste contexto, o correto seria aguardar o efetivo controle da doença para só mais à frente reabrir as escolas e retomar a aulas presenciais. Vale aqui destacar o inquérito epidemiológico realizado e divulgado pelo Município de São Paulo entre as crianças com idade entre 0 e 14 anos, evidenciando que daquelas com resultado sorológico positivo, 64% não apresentaram sintomas, e as demais apresentaram sintomas leves, ou seja, o potencial no aumento da propagação é muito significativo. Isto reforça a tese de alguns especialistas que neste ano, por precaução, não deveríamos retornar com as aulas presenciais.
Existe ainda um cenário sombrio, sem mensuração, sobre o possível impacto a que o SUS será submetido, não só relacionado às sequelas geradas pela Covid-19, como também por todas aquelas com origem nas demandas de saúde que ficaram represadas, pela redução dos procedimentos eletivos ofertados para o cuidado dos casos crônicos, como diabetes, hipertensão e mais grave os casos de câncer, por exemplo, devido ao fato da rede de serviços ficar concentrada e disponível ao atendimento dos casos de Covid-19 mais graves, como também aos casos agudos no atendimento de urgências e emergências de ordem geral.
Tal conjuntura exigirá dos governos municipais grande esforço no planejamento e articulação regional para organização da atenção a população. Ainda a saída da crise gerada pela pandemia se dará num contexto pós-eleitoral, com cenários que apontam para restrições ainda maiores provocadas pela possível queda na arrecadação própria de cada município, e pela incerteza na manutenção nos níveis das transferências de recursos financeiros para o financiamento das ações e serviços de saúde do SUS.
José Carlos de Moraes – Cao é trabalhador do SUS em São José dos Campos e ex-secretário de saúde de Caçapava e Jacareí
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